Como se vê destacado em
vermelho e amarelo diagrama 14, Cristo-Jesus possuía os doze veículos que
formam uma ininterrupta cadeia desde o Mundo Físico até o próprio Trono de
Deus. Portanto, Ele é o único Ser do Universo que está em contato, ao mesmo
tempo, com Deus e com o homem. Cap. XV do Conceito, subt. Jesus e Cristo-Jesus. Diagrama 14 original aqui
por Gilberto Silos
A peregrinação do
Espírito evoluinte é uma longa travessia. Travessia é, também, a vida, o dia, a
circunstância...
Em períodos infinitamente
grandes até aos mais fugazes, o Eterno espírito está sempre transitando,
recolhendo meios para realização de seu destino: a dinamização das faculdades
latentes, que o torne à estatura d'Aquele que o emanou.
Em toda a literatura
espiritualista, quer esotérica, quer exotérica, figuram sempre, como expressivo
símbolo, as travessias: as viagens, o êxodo, atravessar rios e mares, etc. É
sempre alegoria de transições de consciência, no processo de expansão do ser e
de um povo.
O caminho a percorrer
está sempre dentro de nós. Nunca é externo. O exterior é simples meio, para atingirmos o fim, que é a realização
interna. O caminho não é marcado por distância, senão por expansão de
consciência. Por isso disse o Cristo: "EU SOU O CAMINHO...". Ninguém
pode chegar à união com o Pai Universal, com o Criador, senão pelo encontro e
expansão do Eu interno. Pelo semelhante atingimos o semelhante. Pelo
dessemelhante nos isolamos e nos afastamos: tal é o sentido de religião
e de queda: uma questão vibratória.
Deus, no céu (supremo,
elevado) é Luz, é Vida (em vibração mais alta). Satanás (o adversário, em nós,
a natureza inferior), no inferno (inferior estado de consciência) é treva, é
morte.
Na mitologia greco-romana
temos o relato do mergulho do espírito na matéria e as transições pelas quais
poderá alcançar as delícias de Eliseu — a ilha dos escolhidos e dos heróis —
que se distinguiram na batalha da vida, nos desafios da evolução.
Quando Júpiter dividiu seu
Reino, coube a Plutão o governo do Hades. Ele raptou Prosérpina (Perséfone)
para sua esposa. Hermes (Mercúrio) levava para o Hades os mortos e os entregava
às margens do primeiro rio (rio Estige= tenebroso) ao barqueiro Caronte que os
atravessava e, na margem oposta os deixava sob a vigilância do cão Cérbero (de
três cabeças), para que de lá não fugissem.
Os maus sofriam castigos de remorso e o suplício da Hidra, serpente de
50 cabeças.
O Hades tinha cinco rios:
o Estige (tenebroso); Aqueronte (das penas); Flégeton (do fogo); Cocito (dos
lamentos) e Lete (do esquecimento).
Uma
interpretação do séc. XIX para a figura de Caronte, provavelmente para uma
edição da Divina Comédia, pelo pintor russo Alexander Litovchenko. (Museu de
St.Petersburg).
Mito não é fantasia, e
sim uma alegoria. Aqui temos o relato de como a Centelha divina mergulhou no
esquema evolutivo, envolvendo-se sucessivamente nos corpos que formou, com
auxílio das Hierarquias Criadoras, (Prosérpina raptada às regiões inferiores),
unindo-se à Morte (Plutão, regente de Escorpião, correspondente à oitava casa,
da morte), isto é, perdendo consciência de Si próprio e identificando-se como
um ser humano, aparentemente separado e à parte do Espírito.
Quem nos mantém nessa
ilusão é o intelecto condicionado (Hermes), cada vez que renascemos (voltamos
aos planos inferiores) e somos vinculados aos átomos-semente dos três corpos
(Cérbero, cão de três cabeças).
Pelo mau uso do sexo
(suplício da Hidra, relativa a Câncer, que governa a vida geradora) e
ignorantes transgressões (que provocam os remorsos) vamos despertando a
consciência pela dor inevitável, (Lei de Conseqüência).
A maioria da humanidade
vive mergulhada como num sono (irmão gêmeo da morte, que habitava o Hades)
gerando os sonhos (vida irreal) e julgando-se o que não é (Morfeu, o criador
das formas nos sonhos). Oportuno é lembrar que, no mito, o sono e seu filho
Morfeu trazem na mão uma papoula, da qual se extrai o ópio, símbolo da
inconsciência em que mergulhamos.
Para libertar-nos desse
estado há cinco transições (cinco rios). Do ponto de vista comum, do ser humano
em geral, significa transcender os cinco sentidos pela metanóia ou ligação com o Espírito de Verdade, o
Consolador em nós (Mente abstrata), portal para uma vida mais ampla, dos
escolhidos (Eliseu). Daí por diante, os cinco rios representam as cinco
primeiras iniciações, para superarmos em definitivo todas as diferenças humanas
e nos identificarmos em essência, com nossos semelhantes e com toda a Criação.
Os Evangelhos relatam que
o Cristo e seus apóstolos atravessaram muitas vezes o Mar da Galiléia, sempre
com missões diferentes. Essas passagens aludem à missão do Espírito (Cristo)
nos corpos (apóstolos), aparentemente numa rotina diária, mas em verdade,
sempre submetido u novos desafios, a oportunidades renovadas de elevação. A
vida parece igual; os dias parecem repetir-se num monótono ritmo. Mas o espiritualista semidesperto lobriga em tudo novas facetas e renovados convites de
desdobramento de consciência. Cada vez que aceita esse desafio e aproveita essa
oportunidade, ele faz uma transição.
Na tradição cristã
encontramos a vida simbólica de São Cristóvão, padroeiro dos viajantes e dos
transportes em geral. É representado por n m homem com uma criança ao ombro,
atravessando um rio com auxílio do um cajado comprido. É uma maravilhosa
alegoria! Representa o ser humano consciente de sua missão, que reconhece, ama
e obedece ao Eu verdadeiro e superior, buscando ser um canal impessoal de Sua
vontade.
São Cristóvão era um
homem forte (internamente) e desejava servir alguém que lhe fosse superior em
coragem e força. Conheceu um rei extraordinário e passou a servi-lo. Um dia
falaram em "diabo" e o rei se persignou. Cristóvão estranhou e
perguntou ao rei: "Por que fazes o sinal da cruz ao ouvires falar em
diabo?". O monarca lhe respondeu: "Porque é um poder temível".
Falou Cristóvão: "se ele é mais forte que tu servirei a ele". Foi em
busca de Satanás e passou a servi-lo, até que um dia, vendo uma luz, o diabo
tapou os olhos e fugiu. Cristóvão o abandonou e, indo ao encontro da luz,
perguntou-lhe: "Que devo fazer para servi-la?". E a Luz orientou-o: "Vai
ajudar os viajantes na travessia daquele rio perigoso". E o levou até lá,
dizendo: "É uma tarefa difícil e ninguém a aceita". Desde então,
Cristóvão se tornou um servidor da Luz, para atravessar a vau os viajantes.
Um dia foi acordado,
madrugada ainda, por um menininho que lhe pedia para ajudá-lo a atravessar o
rio. Cristóvão, admirado por vê-lo só, não ousou fazer-lhe perguntas: sua
tarefa era ajudar a travessia. Além disso, o menino era singularmente seguro de
si.
São Cristóvão |
Pô-lo no ombro e se meteu
no rio. Quando chegou ao meio, inexplicavelmente as águas começaram a subir e
a correnteza se tornava cada vez mais forte, ameaçando arrastá-lo. Para
complicar a situação, o menino começou a tornar-se cada vez mais pesado.
Cristóvão concentrou toda sua imensa força e coragem e, a duras penas chegou à
outra margem, exausto. Desceu docemente a criança dos ombros e, olhando-a
profundamente, observou: "Meu Deus! Eu parecia estar carregando o mundo! E
por que o rio se tornou inopinadamente cheio e impetuoso?"
O menino sorriu e
respondeu: "Agora te chamarás Cristóforo, ou aquele que conduz o Cristo,
ajudando o Senhor a levar a cruz do mundo". E desapareceu.
Todos nós podemos nos
transformar em Cristóforos, quando assumirmos conscientemente nosso destino
espiritual. Temos de reunir recursos internos, confiança própria e poder.
Temos de passar a servir à Luz interna, depois de nos convencermos da
inutilidade de servir ao poder ambicioso, à fama vaidosa, ao apego de bens e ao
amor sensual. Temos que deixar de servir à natureza inferior e reconquistar
nossa verdadeira identidade.
Então começaremos a
repartir com os outros nossa experiência dessa transição de consciência, para a
vida real, até que, inesperadamente, quando estivermos
internamente maduros, sejamos provados para se.--admitidos à iniciação.
A Igreja descanonizou S.
Cristóvão, devolvendo à estória seu caráter alegórico. Os cristão esotéricos
guardam carinhosamente a lenda, pela esplêndida mensagem que encerra.
Em sua obra famosa,
"O Peregrino", John Bunnyan aproveitou a mesma ideia para descrever
as peripécias do "Cristão" cm sua jornada pelo mundo, até cruzar o
"rio da vida" para um estado de consciência mais amplo.
Mas não é só o
Cristianismo que se valeu da imagem da travessia. A tradição oriental está
repleta de trechos semelhantes, com mensagens variadas.
No livro
"Sidarta", de Hermann Hesse, a biografia romanceada de Buda lembra a
parábola do "Filho Pródigo" Sidarta passou pela vida espiritual e se
desiludiu dos métodos falhos de iluminação. Descambou na vida material e,
finalmente, se reencontrou, com auxílio do "barqueiro" que fazia a
travessia do rio. O "barqueiro" ensinou-lhe a conversar com o rio e
dele aprender, pois o rio é a vida mesma, sempre nova, no ciclo eterno das
águas. E há sempre pessoas diferentes que ajudamos a atravessar e que
atravessam em nossa experiência. Isto quer dizer que devemos tomar consciência
da vida, aproveitando os ensinamentos que ela nos oferece continuamente. Cada
circunstância tem sua razão de ser e se ela nos envolveu é porque temos relação
com ela: devemos encontrar essa relação dentro de nós. Cada lição, cada
acontecimento, cada pessoa que acorre à nossa experiência, é um barqueiro, é
uma ajuda, para realizarmos com mais proveito a travessia. Ao mesmo tempo
servimos de barqueiro aos outros. Cada qual tem sua contribuição a dar na travessia,
de vez que a individualidade, a epigênese, nos concede faculdades pessoais, que
os outros não possuem e que podem completar-lhes os recursos.
De modo especial, o
barqueiro é o que reúne mais recursos e os oferece com amor aos demais. Segundo
a necessidade interno, somos sempre atraídos para a pessoa ou circunstância que
mais nos pode edificar, mesmo que sua aparência seja negativa.
Desse modo, a travessia
de cada ato ou de cada dia, enriquece-se e se torna atraente, pela variedade de
contribuições. Ajudamos os outros a atravessar e eles nos ajudam igualmente na
transição. Queiramos ou não, a vida é uma fraternidade, que tende a se tornar
luminosa e valiosa, na medida em que tomamos consciência do servir. Cada
encontro é um mistério e uma revelação quando nos dispomos a dialogar e
permutar amorosamente os recursos anímicos.
Pena é que a travessia se
faz inconscientemente. A maioria evolui com muita dor, envolvendo-se na
correnteza do rio da vida (circunstâncias) e machucando-se nas pedras. Essa
inconsciência e ilusão de separatividade ao espírito, faz com que a persona se
apegue ao exterior, identificando-se com tudo que o cerca, de modo negativo e
egoísta. Se ajudarmos alguém na travessia, fazemos questão de que ele nos
elogie, nos agradeça ou retribua de alguma forma. Só a Essência serve pelo
servir, (quando a pessoa é um instrumento consciente de seu Espírito, sabe que
a tarefa é atravessar a si e aos demais). Sua missão termina aí.
O servir amoroso e
desapegado é importante. Ele aproveita melhor os meios de evolução e faz a
pessoa progredir mais depressa. É uma travessia mais rápida e mais agradável,
porque não se apega aos meios c\ oi u ti vos, senão que os usa bem e enquanto
são úteis. É como construir uma jangada, atravessar o rio e depois abandoná-la
na outra O apegado se sobrecarrega, retardando a jornada: leva a jangada e as
tralhas às costas... Ora, à medida que evoluímos no caminho, os meios se tornam
diferentes. Novos níveis determinam novas necessidades. Os níveis ultrapassados
devem ser abandonados.
A pessoa apegada se
identifica com os meios. Está sempre vivendo no passado, negligenciando as
oportunidades presentes e a renovação inevitável. Ainda mais: deixa-se
contaminar pelos meios, devido ao errôneo relacionamento com eles. Há uma
estória referente a este ponto:
Dois monges, em meio à
jornada, defrontaram um rio e já se dispunham a atravessá-lo quando veio uma
jovem pedir-lhes que a ajudasse na travessia. Um deles se negou e o outro, de
boa vontade, tomou-a nos braços e a carregou até à outra margem. Separaram-se
dela e continuaram seu caminho. Depois de meia hora de mutismo, o outro monge
disse ao companheiro que ajudou a moça: "Irmão, estou muito triste com
você! Jamais pude supor que você agisse de tal modo!". O outro, admirado,
perguntou: "De que você está falando?". "Da moça — respondeu ele — da jovem que você estreitou nos braços, na travessia do rio!".
"Como? — contestou o monge — eu a deixei na outra margem e você ainda está
com ela?"
A mensagem é clara: a
moça representa, para um monge, uma tentação. Tentações também são todas as
coisas mundanas que, encontrando um ponto fraco em nosso íntimo, possam
afetar-nos. As coisas não são, em si, nem boas nem más; nem pecaminosas nem
virtuosas. Quem lhes confere qualidades é o homem, segundo seu íntimo. Uma
pessoa especializada pode e deve viver no mundo, para servir de "sal da
terra". Se o sal não se misturar à comida, de que servirá? Em si, o sal é
intragável e a comida insossa. Se sabemos nos relacionar, sem identificação nem apreciação viciosa, com o mundo,,ele nos ajuda a evoluir. Tal é a lição do
monge que não se negou a ajudar a moça na travessia do rio. O fato de tomá-la
nos braços, de estreitá-la obrigatoriamente, ao segurá-la e transportá-la, não
o contaminou nem lhe despertou paixões e cobiça. Já o outro monge, progredindo
por outros meios e evitando tudo o que chama "pecaminoso", está, em
verdade, recalcando desejos e pode cair facilmente através da insatisfação, um
dia. Por si, julga o outro.
Outro pormenor
interessante se pode sacar da estória: não há virtude em evitar os desafios da
vida e recluir-se numa vida contemplativa e de exclusiva prática devocional. A
virtude decorre da experiência e da superação do errôneo relacionamento com os
meios evolutivos. Não há nada mau. Até no aparente mal há o bem em gestação.
Deus é Onipresente e Ele é Luz, é Amor. Tudo, afinal, resulta proveitoso ã
evolução.
Os Senhores do Destino
utilizam os meios mundanos como incentivo, para promover a evolução. A fama, o
poder, o dinheiro e o amor são as grandes molas da ação humana. E fazendo é que
se aprende. As atividades cm si não são boas nem más. Quando obrigatoriamente
nos metemos nelas, vamos aprendendo a transcendê-las, no que refere ao apego,
aos abusos etc. não que isto sirva de pretexto para chafurdarmos no que é
reconhecidamente prejudicial. Referimos-nos aos inevitáveis desafios e
tentações da vida.
O monge que levou a moça
ensina isso: ao servir, foi servido. O estímulo do amor, da fama, do poder, da
fortuna, dinamizam nossas faculdades e nos ajudam a fazer grandes travessias —
as transições para melhor. Aprendemos e deixamos as falhas que a prática vai
revelando.
Ao contrário, quem se
omite para não ser tentado, mais facilmente poder cair nas armadilhas de sua
natureza inferior. Suas críticas, sua malícia, são reflexos de seus recalques.
Realmente, a evolução não
se processa apenas no que chamam de "ocultismo", referindo-se a
fenômenos, a desenvolvimento de faculdades etc. A espiritualidade é cultivo
interno; é regeneração de caráter. Ela abrange toda a personalidade viciada e
condicionada, devolvendo ao intelecto, às emoções, à psique e ao corpo denso,
condições de servirem como instrumentos eficazes do Espírito, através da
regeneração dos hábitos.
Certa vez um discípulo,
exultante, correu ao Mestre e lhe disse: "Mestre, consegui!
Consegui!". O Mestre, calmamente lhe perguntou: "Conseguiste o que,
meu filho?" "Consegui cruzar o rio, andando por cima das águas.
Consegui a levitação! Levei trinta anos! Mas consegui!" — exclamou o
discípulo, cheio de euforia. O Mestre ficou sério alguns minutos e depois lhe
observou: "Que pena! Quanta coisa melhor poderias ter feito nesses
trintas anos!''
De fato, a evolução é
global. Os meios estão na própria vida de todos os dias: nas coisinhas
costumeiras. A evolução está no modo como fazemos, como encaramos, como
utilizamos: e tudo isso depende de nosso íntimo, de nosso conhecimento da
verdade, da vivência do amor. Os fenômenos são decorrências inevitáveis da
espiritualização do ser mas não o fim, em si mesmo. No fundo, a busca de
fenômenos esconde a pretensão da personalidade, de distinguir-se, de parecer
melhor e maior que os demais, impressionando-os com algo incomum. Não é por
isso que se mede a espiritualidade. Há muito paranormal com limitações e
falhas gritantes.
É importante meditarmos
sobre a TRAVESSIA e o modo como utilizamos os MEIOS, para realizá-la de modo
mais eficaz, rápido e agradável. Seja pelas lições do rio da vida ou do
barqueiro (Sidarta); seja nas constantes tarefas diárias (travessias do Cristo
com os apóstolos, no Mar da Galiléia); seja pelo poder da vontade persistente e
da coragem (Cristóforo); seja pelos meios que nos facilitam mais (jangada),
através do desapego e discernimento; seja, enfim, pelos estímulos comuns da
existência (ajudar a moça) — importante é que façamos a travessia para níveis
mais altos; importante é que sigamos o interno impulso que nos chama para a
frente e acima. Todavia, mais feliz o que tem a coragem e a paciente
perserverança de se regenerar diariamente, a fim de que a ASCESE decorra com
segurança.
publicado na revista Serviço Rosacruz, novembro, 1976
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