29/07/2018

Travessia

Como se vê destacado em vermelho e amarelo diagrama 14, Cristo-Jesus possuía os doze veículos que formam uma ininterrupta cadeia desde o Mundo Físico até o próprio Trono de Deus. Portanto, Ele é o único Ser do Universo que está em contato, ao mesmo tempo, com Deus e com o homem. Cap. XV do Conceito, subt. Jesus e Cristo-Jesus. Diagrama 14 original aqui 

por Gilberto Silos
A peregrinação do Espírito evoluinte é uma longa travessia. Travessia é, também, a vida, o dia, a circunstância...

Em períodos infinitamente grandes até aos mais fugazes, o Eterno espírito está sempre transitando, recolhendo meios para realização de seu destino: a dinamização das faculdades latentes, que o torne à estatura d'Aquele que o emanou.

Em toda a literatura espiritualista, quer esotérica, quer exotérica, figuram sempre, como expressivo símbolo, as travessias: as viagens, o êxodo, atravessar rios e mares, etc. É sempre alegoria de transições de consciência, no processo de expansão do ser e de um povo.

O caminho a percorrer está sempre dentro de nós. Nunca é externo. O exterior é simples meio, para atingirmos o fim, que é a realização interna. O caminho não é marcado por distância, senão por expansão de consciência. Por isso disse o Cristo: "EU SOU O CAMINHO...". Ninguém pode chegar à união com o Pai Universal, com o Criador, senão pelo encontro e expansão do Eu interno. Pelo semelhante atingimos o semelhante. Pelo dessemelhante nos isolamos e nos afastamos: tal é o sentido de religião e de queda: uma questão vibratória.

Deus, no céu (supremo, elevado) é Luz, é Vida (em vibração mais alta). Satanás (o adversário, em nós, a natureza inferior), no inferno (inferior estado de consciência) é treva, é morte.
Na mitologia greco-romana temos o relato do mergulho do espírito na matéria e as transições pelas quais poderá alcançar as delícias de Eliseu — a ilha dos escolhidos e dos heróis — que se distinguiram na batalha da vida, nos desafios da evolução.

Quando Júpiter dividiu seu Reino, coube a Plutão o governo do Hades. Ele raptou Prosérpina (Perséfone) para sua esposa. Hermes (Mercúrio) levava para o Hades os mortos e os entregava às margens do primeiro rio (rio Estige= tenebroso) ao barqueiro Caronte que os atravessava e, na margem oposta os deixava sob a vigilância do cão Cérbero (de três cabeças), para que de lá não fugissem.   Os maus sofriam castigos de remorso e o suplício da Hidra, serpente de 50 cabeças.

O Hades tinha cinco rios: o Estige (tenebroso); Aqueronte (das penas); Flégeton (do fogo); Cocito (dos lamentos) e Lete (do esque­cimento).

Uma interpretação do séc. XIX para a figura de Caronte, provavelmente para uma edição da Divina Comédia, pelo pintor russo Alexander Litovchenko. (Museu de St.Petersburg). 

Mito não é fantasia, e sim uma alegoria. Aqui temos o relato de como a Centelha divina mergulhou no esquema evolutivo, envolvendo-se sucessivamente nos corpos que formou, com auxílio das Hierarquias Criadoras, (Prosérpina raptada às regiões inferiores), unindo-se à Morte (Plutão, regente de Escorpião, correspondente à oitava casa, da morte), isto é, perdendo consciência de Si próprio e identificando-se como um ser humano, aparentemente separado e à parte do Espírito.

Quem nos mantém nessa ilusão é o intelecto condicionado (Hermes), cada vez que renascemos (voltamos aos planos inferiores) e somos vin­culados aos átomos-semente dos três corpos (Cérbero, cão de três cabeças).

Pelo mau uso do sexo (suplício da Hidra, relativa a Câncer, que governa a vida geradora) e ignorantes transgressões (que provocam os remorsos) vamos despertando a consciência pela dor inevitável, (Lei de Conseqüência).

A maioria da humanidade vive mergulhada como num sono (irmão gêmeo da morte, que habitava o Hades) gerando os sonhos (vida irreal) e julgando-se o que não é (Morfeu, o criador das formas nos sonhos). Oportuno é lembrar que, no mito, o sono e seu filho Morfeu trazem na mão uma papoula, da qual se extrai o ópio, símbolo da inconsciência em que mergulhamos.


Para libertar-nos desse estado há cinco transições (cinco rios). Do ponto de vista comum, do ser humano em geral, significa transcender os cinco sentidos pela metanóia ou ligação com o Espírito de Verdade, o Consolador em nós (Mente abstrata), portal para uma vida mais ampla, dos escolhidos (Eliseu). Daí por diante, os cinco rios representam as cinco primeiras iniciações, para superarmos em definitivo todas as diferenças humanas e nos identificarmos em essência, com nossos se­melhantes e com toda a Criação.

Os Evangelhos relatam que o Cristo e seus apóstolos atravessaram muitas vezes o Mar da Galiléia, sempre com missões diferentes. Essas passagens aludem à missão do Espírito (Cristo) nos corpos (apóstolos), aparentemente numa rotina diária, mas em verdade, sempre submetido u novos desafios, a oportunidades renovadas de elevação. A vida parece igual; os dias parecem repetir-se num monótono ritmo. Mas o espiritualista semidesperto lobriga em tudo novas facetas e renovados convites de desdobramento de consciência. Cada vez que aceita esse desafio e aproveita essa oportunidade, ele faz uma transição.

Na tradição cristã encontramos a vida simbólica de São Cristóvão, padroeiro dos viajantes e dos transportes em geral. É representado por n m homem com uma criança ao ombro, atravessando um rio com auxílio do um cajado comprido. É uma maravilhosa alegoria! Representa o ser humano consciente de sua missão, que reconhece, ama e obedece ao Eu verdadeiro e superior, buscando ser um canal impessoal de Sua vontade.

São Cristóvão era um homem forte (internamente) e desejava servir alguém que lhe fosse superior em coragem e força. Conheceu um rei extraordinário e passou a servi-lo. Um dia falaram em "diabo" e o rei se persignou. Cristóvão estranhou e perguntou ao rei: "Por que fazes o sinal da cruz ao ouvires falar em diabo?". O monarca lhe respondeu: "Porque é um poder temível". Falou Cristóvão: "se ele é mais forte que tu servirei a ele". Foi em busca de Satanás e passou a servi-lo, até que um dia, vendo uma luz, o diabo tapou os olhos e fugiu. Cristóvão o abandonou e, indo ao encontro da luz, perguntou-lhe: "Que devo fazer para servi-la?". E a Luz orientou-o: "Vai ajudar os viajantes na tra­vessia daquele rio perigoso". E o levou até lá, dizendo: "É uma tarefa difícil e ninguém a aceita". Desde então, Cristóvão se tornou um ser­vidor da Luz, para atravessar a vau os viajantes.

Um dia foi acordado, madrugada ainda, por um menininho que lhe pedia para ajudá-lo a atravessar o rio. Cristóvão, admirado por vê-lo só, não ousou fazer-lhe perguntas: sua tarefa era ajudar a travessia. Além disso, o menino era singularmente seguro de si.
São Cristóvão 
Pô-lo no ombro e se meteu no rio. Quando chegou ao meio, inexplicavelmente as águas começaram a subir e a correnteza se tornava cada vez mais forte, ameaçando arrastá-lo. Para complicar a situação, o menino começou a tornar-se cada vez mais pesado. Cristóvão concentrou toda sua imensa força e coragem e, a duras penas chegou à outra margem, exausto. Desceu docemente a criança dos ombros e, olhando-a profundamente, observou: "Meu Deus! Eu parecia estar carregando o mundo! E por que o rio se tornou inopinadamente cheio e impetuoso?"

O menino sorriu e respondeu: "Agora te chamarás Cristóforo, ou aquele que conduz o Cristo, ajudando o Senhor a levar a cruz do mundo". E desapareceu.

Todos nós podemos nos transformar em Cristóforos, quando assumirmos conscientemente nosso destino espiritual. Temos de reunir recursos internos, confiança própria e poder. Temos de passar a servir à Luz interna, depois de nos convencermos da inutilidade de servir ao poder ambicioso, à fama vaidosa, ao apego de bens e ao amor sensual. Temos que deixar de servir à natureza inferior e reconquistar nossa verdadeira identidade.

Então começaremos a repartir com os outros nossa experiência dessa transição de consciência, para a vida real, até que, inesperadamente, quando estivermos internamente maduros, sejamos provados para se.--admitidos à iniciação.

A Igreja descanonizou S. Cristóvão, devolvendo à estória seu caráter alegórico. Os cristão esotéricos guardam carinhosamente a lenda, pela esplêndida mensagem que encerra.

Em sua obra famosa, "O Peregrino", John Bunnyan aproveitou a mesma ideia para descrever as peripécias do "Cristão" cm sua jornada pelo mundo, até cruzar o "rio da vida" para um estado de consciência mais amplo.

Mas não é só o Cristianismo que se valeu da imagem da travessia. A tradição oriental está repleta de trechos semelhantes, com mensagens variadas.

No livro "Sidarta", de Hermann Hesse, a biografia romanceada de Buda lembra a parábola do "Filho Pródigo" Sidarta passou pela vida espiritual e se desiludiu dos métodos falhos de iluminação. Descambou na vida material e, finalmente, se reencontrou, com auxílio do "barqueiro" que fazia a travessia do rio. O "barqueiro" ensinou-lhe a conversar com o rio e dele aprender, pois o rio é a vida mesma, sempre nova, no ciclo eterno das águas. E há sempre pessoas diferentes que ajudamos a atra­vessar e que atravessam em nossa experiência. Isto quer dizer que de­vemos tomar consciência da vida, aproveitando os ensinamentos que ela nos oferece continuamente. Cada circunstância tem sua razão de ser e se ela nos envolveu é porque temos relação com ela: devemos encontrar essa relação dentro de nós. Cada lição, cada acontecimento, cada pes­soa que acorre à nossa experiência, é um barqueiro, é uma ajuda, para realizarmos com mais proveito a travessia. Ao mesmo tempo servimos de barqueiro aos outros. Cada qual tem sua contribuição a dar na travessia, de vez que a individualidade, a epigênese, nos concede faculdades pessoais, que os outros não possuem e que podem completar-lhes os recursos.

De modo especial, o barqueiro é o que reúne mais recursos e os oferece com amor aos demais. Segundo a necessidade interno, somos sempre atraídos para a pessoa ou circunstância que mais nos pode edificar, mesmo que sua aparência seja negativa.

Desse modo, a travessia de cada ato ou de cada dia, enriquece-se e se torna atraente, pela variedade de contribuições. Ajudamos os outros a atravessar e eles nos ajudam igualmente na transição. Queiramos ou não, a vida é uma fraternidade, que tende a se tornar luminosa e valiosa, na medida em que tomamos consciência do servir. Cada encontro é um mistério e uma revelação quando nos dispomos a dialogar e permutar amorosamente os recursos anímicos.

Pena é que a travessia se faz inconscientemente. A maioria evolui com muita dor, envolvendo-se na correnteza do rio da vida (circunstâncias) e machucando-se nas pedras. Essa inconsciência e ilusão de separatividade ao espírito, faz com que a persona se apegue ao exterior, identificando-se com tudo que o cerca, de modo negativo e egoísta. Se ajudarmos alguém na travessia, fazemos questão de que ele nos elogie, nos agradeça ou retribua de alguma forma. Só a Essência serve pelo servir, (quando a pessoa é um instrumento consciente de seu Espírito, sabe que a tarefa é atravessar a si e aos demais). Sua missão termina aí.

O servir amoroso e desapegado é importante. Ele aproveita melhor os meios de evolução e faz a pessoa progredir mais depressa. É uma travessia mais rápida e mais agradável, porque não se apega aos meios c\ oi u ti vos, senão que os usa bem e enquanto são úteis. É como construir uma jangada, atravessar o rio e depois abandoná-la na outra O apegado se sobrecarrega, retardando a jornada: leva a jangada e as tralhas às costas... Ora, à medida que evoluímos no caminho, os meios se tornam diferentes. Novos níveis determinam novas necessidades. Os níveis ultrapassados devem ser abandonados.

A pessoa apegada se identifica com os meios. Está sempre vivendo no passado, negligenciando as oportunidades presentes e a renovação inevitável. Ainda mais: deixa-se contaminar pelos meios, devido ao errôneo relacionamento com eles. Há uma estória referente a este ponto:

Dois monges, em meio à jornada, defrontaram um rio e já se dispunham a atravessá-lo quando veio uma jovem pedir-lhes que a ajudasse na travessia. Um deles se negou e o outro, de boa vontade, tomou-a nos braços e a carregou até à outra margem. Separaram-se dela e continuaram seu caminho. Depois de meia hora de mutismo, o outro monge disse ao companheiro que ajudou a moça: "Irmão, estou muito triste com você! Jamais pude supor que você agisse de tal modo!". O outro, admirado, perguntou: "De que você está falando?". "Da moça — respondeu ele — da jovem que você estreitou nos braços, na travessia do rio!". "Como? — contestou o monge — eu a deixei na outra margem e você ainda está com ela?"

A mensagem é clara: a moça representa, para um monge, uma ten­tação. Tentações também são todas as coisas mundanas que, encontrando um ponto fraco em nosso íntimo, possam afetar-nos. As coisas não são, em si, nem boas nem más; nem pecaminosas nem virtuosas. Quem lhes confere qualidades é o homem, segundo seu íntimo. Uma pessoa especializada pode e deve viver no mundo, para servir de "sal da terra". Se o sal não se misturar à comida, de que servirá? Em si, o sal é intragável e a comida insossa. Se sabemos nos relacionar, sem identificação nem apreciação viciosa, com o mundo,,ele nos ajuda a evoluir. Tal é a lição do monge que não se negou a ajudar a moça na travessia do rio. O fato de tomá-la nos braços, de estreitá-la obrigatoriamente, ao segurá-la e transportá-la, não o contaminou nem lhe despertou pai­xões e cobiça. Já o outro monge, progredindo por outros meios e evi­tando tudo o que chama "pecaminoso", está, em verdade, recalcando desejos e pode cair facilmente através da insatisfação, um dia. Por si, julga o outro.

Outro pormenor interessante se pode sacar da estória: não há vir­tude em evitar os desafios da vida e recluir-se numa vida contemplativa e de exclusiva prática devocional. A virtude decorre da experiência e da superação do errôneo relacionamento com os meios evolutivos. Não há nada mau. Até no aparente mal há o bem em gestação. Deus é Onipresente e Ele é Luz, é Amor. Tudo, afinal, resulta proveitoso ã evolução.

Os Senhores do Destino utilizam os meios mundanos como incentivo, para promover a evolução. A fama, o poder, o dinheiro e o amor são as grandes molas da ação humana. E fazendo é que se aprende. As ativi­dades cm si não são boas nem más. Quando obrigatoriamente nos metemos nelas, vamos aprendendo a transcendê-las, no que refere ao apego, aos abusos etc. não que isto sirva de pretexto para chafurdarmos no que é reconhecidamente prejudicial. Referimos-nos aos inevitáveis desafios e tentações da vida. 

O monge que levou a moça ensina isso: ao servir, foi servido. O estímulo do amor, da fama, do poder, da fortuna, dinamizam nossas faculdades e nos ajudam a fazer grandes travessias — as transições para melhor. Aprendemos e deixamos as falhas que a prática vai revelando.

Ao contrário, quem se omite para não ser tentado, mais facilmente poder cair nas armadilhas de sua natureza inferior. Suas críticas, sua malícia, são reflexos de seus recalques.

Realmente, a evolução não se processa apenas no que chamam de "ocultismo", referindo-se a fenômenos, a desenvolvimento de faculdades etc. A espiritualidade é cultivo interno; é regeneração de caráter. Ela abrange toda a personalidade viciada e condicionada, devolvendo ao intelecto, às emoções, à psique e ao corpo denso, condições de servirem como instrumentos eficazes do Espírito, através da regeneração dos hábitos.

Certa vez um discípulo, exultante, correu ao Mestre e lhe disse: "Mestre, consegui! Consegui!". O Mestre, calmamente lhe perguntou: "Conseguiste o que, meu filho?" "Consegui cruzar o rio, andando por cima das águas. Consegui a levitação! Levei trinta anos! Mas consegui!" — exclamou o discípulo, cheio de euforia. O Mestre ficou sério alguns minutos e depois lhe observou: "Que pena! Quanta coisa melhor poderias ter feito nesses trintas anos!''

De fato, a evolução é global. Os meios estão na própria vida de todos os dias: nas coisinhas costumeiras. A evolução está no modo como fazemos, como encaramos, como utilizamos: e tudo isso depende de nosso íntimo, de nosso conhecimento da verdade, da vivência do amor. Os fenômenos são decorrências inevitáveis da espiritualização do ser mas não o fim, em si mesmo. No fundo, a busca de fenômenos esconde a pretensão da personalidade, de distinguir-se, de parecer melhor e maior que os demais, impressionando-os com algo incomum. Não é por isso que se mede a espiritualidade. Há muito paranormal com limitações e falhas gritantes.

É importante meditarmos sobre a TRAVESSIA e o modo como uti­lizamos os MEIOS, para realizá-la de modo mais eficaz, rápido e agra­dável. Seja pelas lições do rio da vida ou do barqueiro (Sidarta); seja nas constantes tarefas diárias (travessias do Cristo com os apóstolos, no Mar da Galiléia); seja pelo poder da vontade persistente e da cora­gem (Cristóforo); seja pelos meios que nos facilitam mais (jangada), através do desapego e discernimento; seja, enfim, pelos estímulos co­muns da existência (ajudar a moça) — importante é que façamos a travessia para níveis mais altos; importante é que sigamos o interno impulso que nos chama para a frente e acima. Todavia, mais feliz o que tem a coragem e a paciente perserverança de se regenerar diaria­mente, a fim de que a ASCESE decorra com segurança.
publicado na revista Serviço Rosacruz, novembro, 1976

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